O corajoso cinema brasileiro em Cannes
Estimamos que ao menos um dos três cineastas brasileiros de excelência que se encontram na vitrina de Cannes, este ano, ganhe um ramo da palma de ouro maciço
Cannes este ano é uma festa para o cinema brasileiro. Não é nada, não é nada, o Festival de Cinema está emplacando sua 76ª edição. É o segundo mais antigo do mundo que perde apenas para o Festival Internacional de Cinema de Veneza criado sob o domínio do fascismo de Mussolini em 1932.
Mas nesse retorno ao tapete vermelho do Palais – o edifício-sede atual da festa, que sucedeu ao cinema instalado no prédio do cassino da cidade –; depois de exorcizada a pandemia e do isolamento imposto pela Covid, depois da retração econômica do nosso país, do desemprego em massa e de todas as desgraças frutos de um governo funesto instalado em Brasília, é surpreendente que o cinema nacional se faça presente, com força e qualidade, e chame a atenção na Croisette com os filmes que lá estão sendo exibidos até o próximo fim desta semana quando será anunciado o Palmarès.
Eles são quatro e mais uma produção Brasil-Argentina e outros países. Nelson Pereira dos Santos – Vida de Cinema; Firebrand, de Karim Aïnouz; Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho; A Flor do Buriti, de João Salaviza e Renée Nader Messora; Levante, de Lillah Halla e Os Delinquentes, de Rodrigo Moreno, co-produzido por Argentina, Brasil, Luxemburgo e Chile, presente na mostra Un Certain Regard com a história de dois bancários que odeiam o trabalho que fazem e resolvem cometer um roubo.
Um “poema de saudade” é como vem sendo chamado o doc sobre Nelson Pereira dos Santos de autoria da produtora Ivelise Ferreira, viúva do cineasta e da professora da UFF Aída Marques, e apresentado na última sexta-feira na sala Buñuel durante a mostra paralela Cannes Classics. O filme disputa o L’Oeil d’Or, prêmio concedido a produções de não ficção e analisadas por um júri à parte.
“A costura que as duas fazem nesse filme é um primor”, escreveu o crítico Rodrigo Fonseca depois de assisti-lo. “É comovente ouvir Nelson se abrir, elas deixando que ele conte a sua própria história através de entrevistas, na primeira pessoa, desde Rio 40 Graus, de 1955″.
Outro filme brasileiro selecionado para Cannes este ano é Retratos Fantasmas, o novo trabalho do celebrado diretor Kleber Mendonça Filho, um filme-ensaio sobre salas de cinema de antigamente, em sua cidade, no Recife, e integrante da Seleção Oficial de Cannes, mas fora da competição.
O diretor pernambucano é veterano de Cannes: já fez parte do júri do festival em 2021, competiu pela Palma de Ouro em 2019 com Bacurau (dirigido com Juliano Dornelles), e com Aquarius, em 2016. Retratos Fantasmas é o resultado de sete anos de pesquisas, filmagens e montagem. O personagem principal é o centro de Recife como espaço histórico e humano revisitado através dos grandes cinemas que atravessaram o século 20 como espaços de convívio.
Na Croisette desta semana, pelas notícias que chegam de lá, a interpretação de Jude Law como o Henrique VIII de Firebrand,* do diretor Karim Aïnouz, é uma sensação. O diretor cearense é outro veterano de festivais europeus e concorre à Palma de Ouro.
Disputou o Urso de Ouro da Berlinale com o belo Praia do Futuro 1, em 2014, e brilhou duas vezes na mostra Orizzonti, do Festival de Veneza: com o clássico O Céu de Suely, em 2006, e com Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (codirigido por Marcelo Gomes) em 2009. Em Cannes, Aïnouz ganhou o Prix Un Certain Regard, em 2019, pelo seu excelente A Vida Invisível2 e é o diretor do célebre Madame Satã, de 2002, do poético ensaio Aeroporto Central3, de 2018 e do recente Marinheiros da Montanha, de 2021.
Firebrand é o primeiro filme em língua inglesa do brasileiro, é roteirizado pelas irmãs Henrietta e Jessica Ashworth e rememora os embates entre a rainha Katherine Parr e o rei Henrique XVIII, com quem ela foi casada. No pano de fundo, lances das intrigas palacianas e amorosas da época desta sexta e última mulher do rei vivida pela atriz sueca Alicia Vikander, também ela motivo de elogios entusiasmados pelo trabalho nesse papel.
Karim disse, em recente entrevista, que Firebrand foi gestado em meio à crise política vivida no Brasil em 2016, “embora eu não tenha feito nenhuma alusão direta a Dilma Rousseff”, ele ressalta. E comenta que o que o atraiu na personagem foi a sua relação com as figuras de (e no) poder: “É como se eu estivesse falando de uma mulher que se casou com o Trump e foi amiga do Che Guevara. Uma mulher em um trapézio político”.
Uma mulher que enfrentou o machismo e a intolerância do fedorento Henrique, o qual, por causa de uma ferida permanente e de uma prótese na perna, usava um forte e enjoativo perfume de flores para disfarçar o odor nauseabundo dele emanado.
A maternidade de Katherine Parr – acrescenta o cineasta – foi um ponto central na vida dela. Criou os filhos do rei, que não eram frutos legítimos dela, e toda a prole real se encantou com sua maneira maternal de ser e a via como uma mãe. Nessa tarefa que Katherine se impôs de educar uma nova realeza ela encontrou um caminho de moderação política.
Sábado próximo, dia 27, o júri presidido pelo cineasta sueco Ruben Östlund vai anunciar os prêmios do palmarès. Estimamos que ao menos um dos três cineastas brasileiros de excelência que se encontram na vitrina de Cannes, este ano, ganhe um ramo da palma de ouro maciço.
Será importante para reforçar, no mercado internacional de cinema, a resiliência e o vigor da arte e da nossa cultura diante da estúpida negação e do desprezo aos quais foram submetidas durante o tempo de ignorância fascista que acabamos de deixar para trás.
*Tradução de firebrand: agitador(a), militante, revolucionário(a)
**Imagem em destaque: Cena de ‘Firebrand’, de Karim Aïnouz (Divulgação/Sony Pictures)
1 Praia do Futuro está disponível na Claro TV+
2 A vida invisível está disponível na Claro TV+
3 Aeroporto Central está disponível no Globoplay
Jornalista.