Balanço da eleição: passado, presente e futuro
É preciso valorizar muito o resultado das eleições. A vitória apertada não indica o tamanho do embate que vivemos. Não foi um embate normal em uma democracia.
JEAN MARC VON DER WEID
Passado o porre de felicidade com a derrota do energúmeno, precisamos analisar o que se passou e as consequências imediatas e futuras dos eventos que vivemos.
Para começar, é preciso valorizar muito o resultado destas eleições. A vitória apertada não indica o tamanho do embate que vivemos ao longo deste ano. Não foi um embate comum, normal em uma democracia. Lula e a oposição democrática que se formou pouco a pouco durante o primeiro e, sobretudo o segundo turno, teve que enfrentar muito mais do que um ou vários partidos de direita e extrema direita. O candidato da continuidade era também (infelizmente ainda é) o presidente da República que usou e abusou do seu poder para desequilibrar o jogo. O custo para os cofres públicos ainda não está totalmente contabilizado, variando os cálculos entre 100 e 350 bilhões de reais gastos em inúmeras medidas para comprar o voto em todas as classes do eleitorado, em particular o voto dos mais pobres. Por outro lado, Bolsonaro não vacilou em mobilizar recursos por fora para financiar as redes virtuais do gabinete do ódio, na maior ofensiva de mentiras já deflagrada em uma eleição, em qualquer lugar do mundo. O empresariado bolsonarista também abusou das leis, constrangendo seus funcionários para votar no presidente, como os comandos militares e policiais fizeram o mesmo com seus subordinados.
A derrama de dinheiro público não foi suficiente para dar a vitória para o candidato incumbente, mas encurtou a distância que o separava de Lula no final do primeiro turno. A vantagem de 6 milhões de votos caiu para 2 milhões e ainda não está claro, para mim pelo menos, de onde vieram estes votos. Se as pesquisas estavam certas, os votos de Ciro e de Tebet vieram para Lula numa proporção de dois para um. O número de votos em branco e nulos ficaram idênticos aos das pesquisas e aos do primeiro turno, assim como o índice de abstenção. A votação em Lula cresceu no Nordeste, embora menos do que esperado. A única conclusão possível é que, uma parte do voto lulista do primeiro turno, passou para Bolsonaro no segundo. Os 500 mil votos Luzema em Minas Gerais devem ter sido parte importante desta migração, já que a vantagem de 5% de Lula sobre Bolsonaro naquele estado reduziu-se a 1%. Mas e os outros 3,5 milhões de votos? Bolsonaro aumentou a sua votação em todos os Estados, sendo que os ganhos maiores foram em São Paulo, mas também na região sul. Estes aumentos compensaram as votações alargadas em Lula no Nordeste e trouxeram o resultado para uma quase vitória de Bolsonaro.
As instituições encarregadas por zelar pelo equilíbrio de oportunidades exigido pelas leis eleitorais, em particular o TSE, não conseguiram controlar a onda de mentiras nas redes sociais, a derrama de dinheiro e o “assédio eleitoral” do patronato. E a cereja do bolo foi a tentativa da Polícia Rodoviária Federal de inibir o deslocamento dos eleitores na região Nordeste. Pareceu-me uma manobra desesperada, pois bloquear a passagem de 500 a 600 ônibus não teria o poder de mudar os resultados. O importante, neste caso, não foi o impacto desta irregularidade no uso de uma força do Estado para reforçar as chances do presidente, mas o fato em si mesmo, o engajamento de uma força armada no processo eleitoral, tomando partido por um candidato. As consequências ficaram claras já no dia seguinte às eleições, com a conivência desta mesma força com os bloqueios de estradas federais por caminhoneiros bolsonaristas. A incapacidade do TSE controlar a PRF no domingo resultou na sua continuada agressão à lei na segunda feira.
Estamos diante de uma tentativa de golpe iniciada pelos caminhoneiros e empresários do agronegócio? Esta ação, que alguns estão chamando de Capitólio à brasileira, é parte de um plano maior?
Acho que não. O número de participantes nos bloqueios é pequeno, não mais do que 10 a 50 militantes ensandecidos bramando pela intervenção militar em cada um dos 573 eventos até agora registrados, sendo que 306 já foram dispersados. Dos 267 restantes, 49 são só manifestações no acostamento, 136 são interdições parciais e 89 são bloqueios totais. Acontece que mesmo este pequeno número de manifestantes pode fazer muita confusão e está fazendo, sobretudo porque a reação não se faz presente.
O STF ordenou que a PRF cumpra a sua missão de permitir a circulação de veículos e tomou uma outra decisão muito significativa, permitir que as polícias estaduais intervenham para dissolver os bloqueios nas estradas federais. Isto é um indicativo de que a corte suprema está declarando a sua impotência na tentativa de enquadrar a PRF. O risco desta medida gerar ainda mais instabilidade é grande. Já circulam informações sobre embates entre policiais federais e estaduais inclusive com a ameaça do uso da força pelas últimas. Há informações importantes de ações da população para desbloquear as rodovias, expulsando os bolsominions.
Mas o silêncio de Bolsonaro, visto como um ato deliberado para gerar confusão, me parece mais uma falta de coragem em dar o passo seguinte, repudiar o resultado das urnas e chamar seus apoiadores para as ruas em protestos em todo o país. A meu ver, Bolsonaro não se calou por cálculo político, mas por inércia frente à derrota eleitoral. Segundo informações “de cocheira” citadas pela Globo News, o presidente estaria em depressão frente ao que considera uma traição. Com efeito, não só vários de seus apaniguados apressaram-se em reconhecer a derrota do mito (Tarcísio, Damares, Zambeli, Lira, Zema, ex-ministros, o vice-presidente, outros) como até um dos seus filhos defende que o mito reconheça o resultado das urnas. A operação dos bloqueios não foi articulada e inclusive vários líderes bolsonaristas entre os caminhoneiros estão se posicionando contra estes atos. É uma ação espontânea de bolsonaristas desesperados que só prosperou pela ausência de reação.
E onde foi parar a tática que eu chamei de “bola ou búlica”? A meu ver Bolsonaro mostrou-se incapaz de manter os dois ferros no fogo. Por um lado, ele acreditou nas promessas do Centrão, que afirmou desde cedo que ninguém perde uma eleição no Brasil se gastar dinheiro suficiente. Não se pode dizer que faltou dinheiro. Afinal de contas, nenhuma eleição no mundo, nem nos Estados Unidos, onde as campanhas gastam muitos bilhões de dólares (legalmente), existe um precedente de tanto dinheiro derramado. Acreditando que podia ganhar na mão grande (ou no bolso grande), Bolsonaro deixou de lado a preparação do golpe. Por outro lado, embora Bolsonaro tenha mantido a sua pressão contra o processo eleitoral, com a colaboração do Ministério da Defesa, ele perdeu seu argumento ao aceitar os resultados do primeiro turno. Sem o aval do comando das FFAA para questionar os resultados ele ficou encurralado e dobrou a aposta em ganhar nas urnas violando todas as leis eleitorais e confiando que o TSE não teria coragem de questionar a sua vitória irregular.
Discuti muito com vários companheiros esta questão da ameaça de golpe. Para mim a questão nunca foi se o golpe seria vitorioso, mas os riscos que incorríamos com a tentativa. Bolsonaro tinha vários elementos favoráveis para a sua intentona. Tinha muitos milhões de seguidores acreditando na sua cantilena contra as urnas eletrônicas. Pelo menos 700 mil deles estão armados e organizados nos clubes de tiro. Tinha uma forte adesão entre os policiais militares em todos os Estados, aqueles que urravam “caveira” a cada visita do energúmeno a seus quartéis. Tinha a adesão da PRF e de parte da PF. Tinha a adesão dos comandantes da marinha e da aeronáutica, inclusive com manifestações explícitas e irregulares em redes sociais. Tinha a adesão dos comandantes de tropa, os generais de brigada, coronéis, capitães e tenentes, muitos se manifestando nas redes sociais, seguindo o exemplo de seus superiores. Por que será que ele não apelou para esta base armada? A meu ver Bolsonaro perdeu o timing e se enredou na tentativa de ganhar no voto. Lembremos que durante as eleições, o que vimos foi a desmobilização do gado. Os atos político eleitorais de Bolsonaro foram pouco mobilizadores. Enquanto Lula levou milhões para as ruas em sua campanha, Bolsonaro levou uns poucos milhares. O presidente confiou na sua “maioria silenciosa”, já que a sua última tentativa de levar grandes massas para apoiá-lo foi no sete de setembro. A partir daí o DataPovo tão caro a Bolsonaro passou a contar os números dos petistas e lulistas e o gado desapareceu.
Sempre foi evidente que Bolsonaro não conseguiria anular as eleições sem uma massiva demonstração de força de seus seguidores, de modo a provocar um estado de instabilidade que empurrasse a generalada para pressionar o congresso. Deixar para fazer o auê depois das urnas fechadas não deu certo, pelo menos até agora. A derrota por poucos votos não impediu que o congresso e o judiciário declarassem um vencedor e os bolsonaristas se retraíram. Os atos de bloqueio de estradas são uma perturbação da ordem democrática, mas não tem potencial para criar o caos que Bolsonaro precisa. E falta coragem para passar por cima da generalada do alto comando e chamar a oficialidade média para a revolta. Bolsonaro não tem alternativa a não ser entubar a derrota e se preparar para ir para casa, comer pão com leite condensado e esperar pelos processos que cairão sobre ele uma vez perdida a imunidade do cargo.
O que me preocupou todo este tempo foi a falta de um plano de contingência para o caso de uma tentativa de golpe. Negar o risco nunca me pareceu uma atitude inteligente e sempre se assemelhou a um reconhecimento de que não haveria nada a fazer. Nem Lula nem o PT e seus aliados prepararam as massas para a hipótese da tentativa de golpe e não se fez qualquer apelo para uma reação popular caso ela viesse a ocorrer. Felizmente, confirmou-se uma avaliação que fiz em um dos meus artigos. Falta a Bolsonaro a inteligência e a coragem para um gesto de alto risco. Ele não tem uma base orgânica, um partido e uma tropa de choque respondendo a um comando disciplinado. O energúmeno sempre agiu acreditando que bastava chamar os seus através das redes sociais para que um movimento insurrecional acontecesse. Com o choque da derrota não só não houve uma maré de manifestações espontâneas capaz de gerar a crise institucional necessária para mover as FFAA, como o próprio presidente foi rapidamente abandonado pelos seus pares.
Salvou-se a democracia, mas a um preço muito alto e não só em um déficit gigantesco nas contas públicas. Os mecanismos de controle e aplicação das leis se mostraram frágeis, embora tenham contido algumas das barbaridades mais ultrajantes do presidente.
E o futuro? Lula fez um discurso 100% correto no dia da vitória e apontou para um programa de recuperação das instituições democráticas, da capacidade do Estado em promover as necessárias mudanças sociais e do enfrentamento da crise socioambiental que Bolsonaro deixou como “herança maldita”. Está claro que Lula vai governar com uma frente ampla dos defensores da democracia, muito além da base petista e da esquerda. Mas as dificuldades vão ser gigantescas, sobretudo no enfrentamento de um dos piores Congressos da nossa história, onde a direita oportunista (Centrão) e a extrema direita bolsonarista vão criar problemas de todo tipo. Vai ser preciso governar com acordos com políticos que estão muito longe de olhar para as necessidades do povo. A mobilização social vai ter que compensar esta fraqueza parlamentar com uma intensa participação nos debates sobre as políticas públicas.
Com todos estes problemas, entretanto, estamos em um momento em que a esperança de dias melhores voltou a contaminar uma parte imensa da nossa população, sobretudo os mais necessitados. É este capital de esperança que me leva a crer que temos uma chance de resgatar o país que Bolsonaro levou para a beira do abismo.
O programa defendido por Lula nestes últimos dias está corretamente definido em suas prioridades. A questão vai ser o como usar os poucos recursos disponíveis para fazer o máximo e Lula é bom nisso.
Está na hora de arregaçar as mangas e discutirmos os problemas de fundo que nos afligem. Meu próximo artigo tem como título “tudo aquilo que devíamos ter discutido nas eleições … e que vai cair sobre nós em breve”.
Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971, fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983, membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016 e militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta.