Mulheres: um acessório dos anos 50
O filme do cearense Karim Aïnous trata das vidas truncadas e invisíveis das mulheres de um Brasil nem tão distante que festeja O Dia Internacional da Mulher e a luta pela autonomia e independência da população feminina
A vida invisível, do diretor Karim Aïnous, de 54 anos, acabou atropelado no seu lançamento, no Brasil, pelos espetaculares Bacurau, Parasita e Coringa, colocados no mercado mais ou menos na mesma época do filme inspirado livremente no romance da escritora Martha Batalha, A Vida invisível de Eurídice Gusmão. Mesmo assim, ele levou mais de 150 mil espectadores para assistir a desoladora trajetória das irmãs Guida e Eurídice, no Rio de Janeiro dos anos 50, foi vendido para trinta países europeus e orientais e conquistou dezenas de prêmios em importantes festivais, ano passado.
Depois de uma firme e brilhante trajetória internacional e dos meses em que se manteve inabalável em cartaz em São Paulo, no Rio de Janeiro – com as platéias dos dias úteis sempre repletas de mulheres – , e outras poucas capitais, entrou no catálogo da Netflix no fim de 2019 . É possível assisti-lo ou reprisá-lo em casa e para tal comentamos agora o filme, no mínimo provocante na obra de Ainöus, embora ele repise o mesmo tema, mas em tom diverso dos seus trabalhos anteriores.
Ou seja: as histórias das e dos resilientes, daquelas e daqueles que partem, dos que desaparecem, os que estão em viagem permanente, os que se movem, e de todas e todos com coragem para tomar nas mãos as rédeas do seu destino, mesmo que medíocre, para sobreviver; e mesmo que a expectativa de viver melhor não se mostre possível. Melodramas que, queiramos ou não, tingem as histórias de todos nós.
Assim foi com Praia do futuro, O céu de Suely, Viajo porque preciso, Abismo prateado, Cinema, aspirinas e urubus, os filmes anteriores de Aïnous que situam o cineasta cearense no grupo criador de um cinema brasileiro atraente, de qualidade e original fora do eixo Rio-São Paulo.
A vida invisível relata a dolorosa trajetória de duas irmãs da pequena classe média, no Rio, muito ligadas uma à outra e separadas brutalmente quando uma delas, Guida, é expulsa de casa pelo pai, um padeiro conservador, ao retornar, grávida, depois de fugir com um namorado que a deixa no meio do caminho. As duas, Eurídice e Guida, acabam passando suas vidas vidas tentando se reencontrar e sobrevivendo de algum modo. Uma, com o projeto de se tornar uma pianista profissional. A outra, extrovertida, solar, de viver uma grande história de amor.
O filme foi rodado nos bairros da Tijuca, em Santa Teresa, no Estácio e em São Cristóvão.
Trata-se, sem pudor, de um ”melodrama tropical” como o próprio Aïnous classifica o filme onde imprimiu matizes da dramaturgia de Nelson Rodrigues e, segundo ele, lembrando de telenovelas de Janete Clair. Mas relatando o que se passa em cores chapadas, saturadas e despudoradas.
Ele sublinha a resistência ativa de algumas poucas mulheres da geração dos anos 20/30 e até dos 40, no Brasil, a grande maioria delas sacrificada pela cultura assumida do machismo e da ignorância truculenta, resultados evidentes dos preconceitos mais tacanhos que vigoraram até os primórdios dos anos 60 – ontem, em termos históricos!
Situação agravada, logo em seguida, pela visão da imagem da mulher durante a ditadura civil-militar: ou a de uma santa ou de uma prostituta.
O filme aponta para mulheres que trouxeram e trazem ainda o desejo irrefreável de independência mesmo que os sonhos e os projetos tenham sido destruídos por uma sociedade patriarcal sufocante, no passado, e arejada até certo ponto, hoje.
Este é o tema do filme de Aïnous: as mulheres acessórios sexuais e/ou reprodutoras da época. É argumento que vem bem a propósito para ser relembrado neste fim de semana quando se festeja o Dia Internacional da Mulher.
O mais recente trabalho do cineasta cearense, Nardjes A., com estréia marcada para este ano, é o documentário no qual ele segue a vida de uma jovem militante, durante 24 horas, na convulsionada Argélia de hoje. É uma forma, nas palavras de Aïnous, de ”mostrar como a juventude daquele país, de onde vem minha família, está lutando nas ruas” há quase um ano, pela democracia e contra um ditador que se perpetua na presidência.
O símbolo escolhido é, mais uma vez, feminino.
A vida invisível traz, no elenco, duas jovens estreantes escolhidas em teste entre 300 candidatas. Carol Duarte vem da televisão e Julia Stockler é experiente no teatro. Mais Fernanda Montenegro, como atriz convidada, que faz uma Eurídice idosa em participação especial, e Gregório Duvivier, Bárbara Santos, Flavio Bauraqui. Maria Manoella.
“O que me levou a adaptar A vida invisível foi o desejo de dar visibilidade a tantas vidas invisíveis, como as de mulheres da geração da minha mãe, minha avó, das minhas tias e de tantas outras mulheres dessa época. As histórias dessas personagens não foram contadas o suficiente.”
O filme, que ganhou o Grand Prix da mostra Un Certain Regard, no Festival de Cannes do ano passado e chegou a ser indicado, numa primeira seleção, para o Oscar, é co-produzido pelo brasileiro Rodrigo Teixeira (RT Features), pela alemã Pola Pandora (braço da The Match Factory), Sony Pictures, Canal Brasil e Naymar. O financiamento para o trabalho é do fundo alemão Audiovisual e Ancine.
A vida invisível existe, assim como dezenas de outras produções recentes da indústria cinematográfica brasileira, como resultado da ativa atuação da Ancine – Agência Nacional do Cinema – nos últimos anos, atualmente dirigida por um pastor evangélico e ameaçada até de extinção.
É um filme/registro que deve ser visto por tratar de um tema – a opressão e a invisibilidade da mulher no país até bem pouco tempo atrás, uma realidade desumana.
Lembrando que em 1827 foi baixada a primeira grande lei de Educação no Brasil onde se determinava que as alunas deveriam aprender menos matemática que os alunos. A elas era permitido apenas o ensino das quatro operações. Mais não era necessário nem conveniente segundo os legisladores da época, quase todos membros da nobreza.
Pela luta das mulheres emancipadas de hoje – é uma luta que perdura – , reconhecimento e respeito.
*A vida invisível está disponível na Claro TV+
Jornalista.