Os anti-heróis de uma guerra no mar
‘Marinheiro de guerra’ alerta para a força desumana das guerras, onde inocentes são atingidos em um processo de vida ou de morte sem possibilidade de defesa
Na sua origem, Marinheiro de guerra é um longo filme norueguês de quase três horas de duração que chegou a ser pré-indicado ao Oscar deste ano. Para exibição no Brasil e em outros países ele foi reeditado para três episódios de uma minissérie em cartaz atualmente no streaming* e é mais uma produção chamando a atenção do espectador para a força desumana das guerras nas quais populações civis inocentes são atingidas em um processo de vida ou de morte sem possibilidade de reação defensiva.
No filme – e na série – é relatado um episódio real da história da marinha mercante norueguesa, a quarta do mundo na época da Segunda Grande Guerra, e do desamparo das tripulações dos seus navios carregados de alimentos ou de materiais estratégicos, como o minério de ferro, atacadas nos mares e bombardeadas ou por alemães nazistas (que ocupavam o país) ou por aliados franceses e britânicos em luta contra esses.
“Eram tripulações que se tornaram civis desarmados na linha de frente de uma guerra da qual nunca pediram para participar”, comenta o diretor e roteirista do filme, o norueguês Gunnar Vikene se referindo ao acordo que o seu governo fechara, um ano antes da invasão alemã do país, em 1940, prevendo a utilização de todos os seus mais de mil navios mercantes com tripulações desarmadas no esforço de guerra. Quatro mil desses marinheiros de guerra, como foram conhecidos esses homens e essas mulheres, elas em geral cozinheiras de bordo, acabaram morrendo. Os sobreviventes foram esquecidos pela História.
Ao contrário dos soldados nos campos de batalha, esses civis não receberam o crédito que mereciam pelo seu serviço e foi esse descaso que Vikene quis destacar no filme.
“Eles são alguns dos muitos heróis desconhecidos daquela guerra. Foram apanhados desarmados pelo conflito e não podiam tomar decisões por si mesmos nem podiam fugir porque seriam considerados desertores. Não eram militares e não se encaixavam na imagem de herói porque não tinham uniforme, armas nem medalhas. Terminaram esquecidos e maltratados quando a guerra terminou”.
A comovente história contada por Vikene é inspirada em eventos reais do período. Os personagens fictícios são um amálgama de outros indivíduos, amigos do pai do diretor, os quais ele conheceu quando era menino.
O drama é este: com dificuldades de conseguir emprego em terra, e contando com a ajuda do melhor amigo Sigbjørn, Alfred Garnes decide embarcar com ele em um navio mercante, onde será o responsável pela cozinha, apesar do receio de ir para o mar e deixar a família em terra. A Segunda Guerra Mundial já estava em curso embora o seu país, até aquele momento, não tivesse entrado no conflito.
Mas alguns meses após o embarque, quando Alfred e Sigbjørn estão no meio do oceano atlântico, a Alemanha invade a Noruega.
Embora com uma reedição prejudicial ao bom acabamento da narrativa cinematográfica, e com a mescla de componentes artísticos com ritmo e de maneirismos das séries de TV, mesmo assim vale conhecer a história pungente dos dois anti-heróis, Garnes e Sigbjørn, interpretados por excelentes atores: Pál Sverre Hagen e Kristoffer Joner.
As sequências finais estão longe de sentimentais. O retorno de Garnes para Bergen, a sua cidade (que na realidade foi duramente bombardeada pelos aliados), anos depois de embarcar, e onde permanecera a família; e o pungente reencontro dos amigos já idosos, os dois sentados se olhando e permanecendo em longo silêncio, sem nada mais a dizer um ao outro, as duas selam o episódio central de suas vidas.
Marinheiro de guerra é mais um elemento de reflexão sobre a guerra e a paz bem necessária nesse momento em que o mundo se debate entre costurar acordos para continuar funcionando conciliado ou mergulhar mais uma vez no horror das grandes guerras.
*Netflix/séries.
Jornalista.