Sobre a palavra amor
O simples, tocante filme de Charlotte Wells, escocesa e estreante em longas-metragens, é dos mais brilhantes da temporada
Uma das mais belas sequências de “Aftersun”, a festejada produção anglo-americana incorporada nas listas dos melhores filmes de 2022 dos mais influentes críticos daqui e do mundo, é a dança da filha de onze anos com o jovem pai, na pista de um bar, ao som de David Bowie cantando dolorosamente que ”o amor é uma palavra tão fora de moda”.
Na maré de filmes pretensiosos em cartaz atualmente (cinemas e plataformas on line), promovidos de modo insistente em campanhas dos grandes grupos da indústria cinematográfica visando algum Oscar no próximo dia 12 de março, o simples, tocante filme de Charlotte Wells, de 38 anos, escocesa e estreante em longas-metragens, é realmente um dos mais brilhantes da temporada. Deve ser visto.
“Aftersun” ganhou o prêmio da sofisticada Semana da Crítica do Festival de Cannes, no ano passado, e a dupla de seus protagonistas, o ator Paul Mescal e a pequena Frankie Corio, de 13 anos, é de fato um capítulo à parte com seu trabalho de interpretação de delicadeza ímpar. Ele, um jovem homem mal chegado aos 30 anos, afetuoso, ambíguo, tristonho e reflexivo, que entremostra zonas desconhecidas na sua personalidade, na vida e em suas atividades; inclusive, filosofias e ginásticas orientais sugeridas em zoom pela pequena pilha de livros sobre sua mesa de cabeceira.
Wells fez o filme com fragmentos, algumas vezes estilhaços, e com lampejos que tem, agora, no tempo presente. A atriz que faz seu papel de adulta é Celia Rowlson-Hall, e ela traz lembranças já esfumaçadas algumas, outras ainda nítidas daquela pequena temporada. Era final da década dos anos 90 e eram as férias que viveu com o pai separado de sua mãe, em um resort na Turquia, quando ela tinha onze anos.
Sophie e Calum tomam banho no Mediterrâneo, mergulham, comem juntos, tomam sorvete e banhos de sol, brincam, jogam bilhar, dançam ao som de Under Pressure, da banda Queen…. e só.
Mas quanto de alegria mesclada à tristeza há no subtexto desse poema que trata da intimidade de dois estranhos temperada com o desconhecimento um do outro. Para entender uma pessoa é preciso mesmo conhecê-la? Fica a pergunta.
Há cenas montadas por Wells com imagens gravadas em VHS, ou em fotos, e a montagem sempre impressionista é fascinante. A fotografia dourada de Gregory Oke segue a mesma essência hipersensível da narrativa. E nossos olhos não se afastam em qualquer momento do filme da Sophie de Frankie Corrio e do Calum de Paulo Mescal.
E há ainda a música, recurso utilizado por Wells para falar sobre sentimentos não verbalizados, como Losing My Religion, do R.E.M. cantada por Sophie em um karaokê.
Na última noite desse último encontro de pai e filha, os dois dançam com Under Pression: “A insanidade sorri, sob pressão estamos pirando/ Não podemos dar a nós mesmos mais uma chance?/ Por quê não podemos dar ao amor mais uma chance? Por quê não podemos dar amor, dar amor, dar amor, dar amor, dar amor? Pois o amor é uma palavra tão fora de moda? E o amor te desafia a se importar com as pessoas no limite da noite/ E o amor desafia você a mudar nosso modo de nos preocupar com nós mesmos.”
“Aftersun”, fim da década de 1990. A época que prenunciou, com o Queen, Bowie e Under Pression, que o mundo não iria longe vivendo sob tanta pressão; como vemos agora.
Jornalista.