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Bustani: o homem comum em busca da verdade

Bustani: o homem comum em busca da verdade

A História não se repete como farsa, mas como tragédia, nesse caso a seguir. Se há vinte anos o Iraque foi invadido com o falso pretexto construído pelo governo estadunidense de abrigar um arsenal mortífero de armas químicas, hoje a Rússia denuncia os longos túneis subterrâneos da metalúrgica de Azovstal, na cidade de Mariupol, na Ucrânia, onde militares e cientistas, alguns desses vindos de países ocidentais, se dedicaram, às escondidas, desenvolver experiências com armas biológicas letais, de massa.

“Uma antiga questão se impõe com nova denominação. As diferentes versões dos fatos se transformaram em uma guerra de narrativas”, disse o diretor e roteirista de cinema José Jofilly, em entrevista. O seu documentário, Sinfonia de um homem comum, Menção Honrosa no Festival É Tudo Verdade, foi apresentado no Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, o IDFA, uma das mais importantes mostras de documentários do mundo e participou do HotDocs, no Canadá, o principal festival de docs da América do Norte.

Agora, estreando em circuito de cinemas brasileiros, o filme trata do lamentável e escandaloso episódio (2002) da pressão do governo norte americano a que foi submetido o embaixador brasileiro José Maurício Bustani para renunciar ao cargo que ocupava de primeiro diretor geral da OPAQ, a Organização para a Proibição de Armas Químicas, em Haia, de 1997 a 2002.

O importante órgão recém constituído na época, filiado à ONU, tinha como objetivo implementar a Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Armazenagem, Produção e Uso de Armas Químicas e sua Destruição.

O diplomata defendia a adesão do Iraque à OPAQ a fim de possibilitar as inspeções de armas no país, mas o então presidente George W. Bush afirmava a priori que o país possuía armas de destruição em massa; que como se sabe não existiam.

Bustani foi vergonhosamente expulso da instituição através das truculentas manobras do vice-presidente Dick Cheney e do ex-militar John Bolton, assessor do governo Bush e embaixador dos EUA na ONU, Conselheiro de Segurança Nacional na época.

A corajosa história de Bustani volta à tona pelas mãos de Joffily e de Pedro Rossi, coautor do excelente roteiro e companheiro do cineasta em outros filmes de sucesso como Caminho de Volta Soldado Estrangeiro. Joana Berg e David Meyer também são do grupo de eficientes coautores.

Durante as filmagens de Sinfonia de um Homem Comum, o diplomata foi convidado a dar um depoimento sobre denúncias de inspetores da OPAQ, mas foi barrado pelos representantes de Washington, Londres, Paris e Berlim. Hoje, José Maurício Bustani (‘José’, como é chamado afetuosamente pelos muitos amigos), de 74 anos, é aposentado, vive no Rio de Janeiro e se dedica às suas duas paixões; o piano e a música clássica.

‘Vinte anos depois da invasão do Iraque estamos atônitos com a quantidade de notícias que chegam até nós sobre a nova guerra,” comenta Joffily. ‘

‘Voltamos a lidar com a guerra de narrativas, com a diferença que hoje há as redes sociais”.


”Sejam versões dos fatos, sejam guerras de narrativas, a disputa pela verdade talvez seja mais relevante que a própria realidade. Ganha o lado que domina a narrativa. Sempre será assim”? ele indaga.


O documentário é atraente, tem uma fotografia sensível, é delicado, sereno do ponto de vista plástico e conta com depoimentos históricos. O inspetor geral da OPAQ David Myer, na época do escândalo, Fernando Henrique Cardoso e o ex-chanceler Celso Lafer (que não defenderam o embaixador na campanha contra ele) participam como entrevistados.

Recortes de jornais de época relataram e denunciaram a pressão sobre o brasileiro, e divulgavam notícias falsas sobre ele produzidas pela campanha de difamação então em curso. Há também a sessão histórica no vídeo de Donald Rumsfeld, no congresso, em Washington, mentindo abertamente: ”Nós sabemos que eles têm armas químicas e biológicas de destruição de massa,” referindo-se aos iraquianos.

O que ”eles, os americanos sabiam” não era antraz nem ”o que eles (os iraquianos) escondem”. O que aquele país de 40 milhões de pessoas, estigmatizado como ”o eixo do mal” possuía era, sim, um patrimônio de riqueza petrolífera inestimável.

‘José”, diz Myer, ”fez uma coisa imperdoável. Aproximou-se da Líbia e do Iraque para conversar com ambos os governos sobre a possibilidade de assinarem uma Convenção. Deste modo ele tentava que ambos fossem alvos de uma inspeção oficial e essa inspeção oficial era a última coisa que os americanos desejavam”.

Já o ex-presidente Cardoso, no filme, tergiversa com seu testemunho. Não defende Bustani publicamente. Fala de ”utopias viáveis” e  de ”o poder é o poder’ etc.etc.

Em entrevistas de época, o brasileiro diretor geral da OPAQ, que se encontrava em seu segundo mandato, dizia claramente: “Eu não vou seguir ordens de Washington. A Organização é independente; não é discriminatória. E eu sou uma pessoa muito independente”.

”O que Bustani não percebeu é que o papel dele era cumprir o que os EUA mandavam”, diz um inspetor em determinado momento da narrativa.

Um dos episódios mais grotescos apresentados no documentário, que conta com trabalho de pesquisa primoroso, faz menção a um diálogo entre o então presidente Lula, em visita à Grã Bretanha e o primeiro ministro Tony Blair, depois de Bustani ser nomeado embaixador do Brasil em Londres e após ocupar a chefia da embaixada brasileira em Paris.

‘Não posso compreender a perseguição que fizeram ao Bustani”, diz Lula a Blair, ”porque ele pertencia a uma instituição fiscal internacional, do mundo”.  Ao que Blair, com sua conhecida grosseria respondeu: ”Eu espero que ele não tenha tido razão”.

O que fica como reflexão a essa venenosa história rememorada hoje pelo documentário de Joffily, no momento justo da atual conjuntura geopolítica internacional, é o seguinte: situações semelhantes continuam se repetindo nos bastidores das organizações multilaterais. É uma das conclusões a extrair de Sinfonia de um Homem Comum, isto é: a saga do homem em busca da verdade.

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