Bahia Governo Presente Futuro pra Gente

Pela reconstrução da política de participação social no governo Lula: argumentos e propostas

Pela reconstrução da política de participação social no governo Lula: argumentos e propostas

Por LEONARDO AVRITZER [1] e WAGNER ROMÃO [2]

A reorganização das políticas participativas no terceiro mandato do Presidente Lula não é apenas uma necessidade relacionada à orientação política do Partido dos Trabalhadores. É uma exigência política consideradas as formas não públicas e anticidadãs de organização do orçamento público no período recente. O governo de Bolsonaro (e de Temer, em menor medida) interrompeu um processo gradativo de reconhecimento da participação social como elemento estratégico da atuação do Estado brasileiro em sua relação com a sociedade. Vimos os conselhos nacionais serem descaracterizados e extintos e as conferências de políticas públicas – que reuniram milhões de pessoas no período Lula e Dilma – serem descontinuadas. O “orçamento secreto” é o ápice das manobras antirrepublicanas do parlamento brasileiro. Bolsonaro apenas falou com os setores da sociedade que concordavam com ele, sobretudo no mundo empresarial e religioso.

Sensível à necessidade da retomada de um governo democrático e popular, o presidente Lula tratou da participação e do diálogo com a sociedade em diversas ocasiões de sua vitoriosa campanha eleitoral: um orçamento participativo nacional em contraposição ao “orçamento secreto”; a retomada das conferências nacionais de políticas públicas, a maior marca de participação social de seu governo; a construção de um governo amplo, de diálogo com toda a sociedade brasileira.

Entendemos que o momento da transição deve ser de reflexões e de preparação para as tarefas que temos nos próximos quatro anos. Nesta contribuição à renovação da política de participação social no governo Lula, abordaremos seis pontos:

   1. a criação de uma secretaria dentro do órgão de articulação política do Governo Federal que estruture a participação social, a relação com os movimentos sociais e as diferentes formas de políticas participativas;

   2. a recomposição dos conselhos nacionais de políticas públicas, após o terremoto que se abateu sobre eles com o decreto 9.759/2019;

   3. a retomada das conferências nacionais de políticas públicas, em sua maioria desativadas no atual período;

   4. o debate sobre o Orçamento Participativo nacional, proposto por Lula como uma contraposição ao “orçamento secreto”;

   5. a inclusão dos movimentos sociais na formulação e implementação de políticas públicas, como elemento mobilizador e articulador de um projeto de sociedade democrática e popular; e

   6. a importância de que ações participativas se constituam em um princípio de governo aberto em todas as secretarias e ministérios, em um trabalho contínuo co-criação entre sociedade civil e governo, por políticas públicas mais democráticas.

A seguir, detalharemos nossos pontos.

1 – Uma estrutura de participação na Secretaria Geral da Presidência da República

A primeira questão relevante a ser discutida em uma reorganização dos processos participativos é a criação de um local no Governo Federal que possa de fato coordenar as diferentes ações relativas a reorganização dos conselhos nacionais, a relação com os movimentos sociais, a formação de uma burocracia capaz de lidar de forma efetiva com a participação, além da construção de uma proposta de orçamento participativo nacional. Em nossa opinião esse local de estruturação administrativa das ações participativas deve ser na Secretaria Geral da Presidência com a reorganização de uma Secretaria Nacional de Participação Social. O primeiro governo Lula realizou isso em seu primeiro dia de governo com a Medida Provisória Nº 103, de 1º de Janeiro de 2003 à qual competia, entre outras de suas atribuições, “assistir direta e imediatamente ao Presidente da República no desempenho de suas atribuições, especialmente no relacionamento e articulação com as entidades da sociedade civil e na criação e implementação de instrumentos de consulta e participação popular de interesse do Poder Executivo”.

A Medida Provisória 103 promoveu muito mais do que uma reorganização de governo:  forjou uma concepção de governo que colocou a organização dos processos participativos no campo de suas principais estruturas de gestão, localizada diretamente no Palácio do Planalto. Nesse caso, a nossa proposta é que a Secretaria Geral da Presidência tenha um papel ampliado. Para além do papel central de articulação com a sociedade civil e os movimentos sociais – realizado nos governos petistas pela Secretaria Nacional de Articulação Social – e das novas tarefas que proporemos abaixo, é urgente a recomposição dos conselhos nacionais e sua perenização enquanto lócus deliberativos da administração federal, e também a retomada das conferências nacionais. É importante que a Secretaria Geral da Presidência assuma esse papel de coordenação, em diálogo com as respectivas secretarias e ministérios, ainda nos primeiros dias de 2023.

Proposta 1: retomar o papel da Secretaria Geral da Presidência da República como articuladora da relação com a sociedade civil e movimentos sociais participação nos termos da Medida Provisória 103/2003, acrescentando a ela a tarefa de reorganização dos conselhos e conferências nacionais de políticas públicas.

2 – A recomposição dos conselhos nacionais de políticas públicas

Os conselhos nacionais são parte essencial do processo de relação entre participação e elaboração de políticas públicas no Brasil, instituído pela Constituição de 1988. Ainda que a Constituição tenha estabelecido uma dinâmica participativa em todas as áreas de políticas públicas, ela também determinou áreas fundamentais que iriam se destacar na própria organização de políticas públicas, durante o período da Nova República. Entre essas áreas vale a pena mencionar as três nas quais conselhos nacionais foram imediatamente implementados: Saúde, Assistência Social e Criança e Adolescente.

A partir de 1994, os governos FHC e Lula instituiram uma política de ampliação dos conselhos nacionais, nas mais diferentes áreas de políticas públicas. Foram 19 conselhos criados por FHC e 41 criados por Lula. Com essa nova política, de ampliação da participação e de incorporação de atores da sociedade civil ou de profissionais dessas áreas, no processo de elaboração de políticas públicas, houve um enorme avanço na relação com a sociedade civil no governo. Essa relação, que posteriormente acabou ampliando as próprias conferências nacionais, foi fundamental para o novo pacto em torno das políticas sociais que existiam na primeira década deste século.

Desde 2016, com Temer, e mais fortemente a partir de 2019, com Bolsonaro, foram sendo realizadas mudanças que diminuíram fortemente a participação de atores da sociedade civil na elaboração de políticas públicas no Brasil. Carla Bezerra, Maira Rodrigues e Wagner Romão (2022) mostraram que poucos foram os conselhos cuja estrutura permaneceu inalterada. Na maior parte deles, especialmente aqueles de muita relevância, como o Conselho Nacional de Meio Ambiente e o Conselho Nacional de Assistência Social, foram feitas fortes intervenções no sentido de diminuir a participação dos atores da sociedade civil na elaboração destas políticas públicas. A política participativa no novo governo Lula deverá rever fortemente as limitações impostas por Bolsonaro, seja através do decreto 9759/2019, seja através de políticas específicas para determinadas áreas, como meio ambiente. Será preciso estabelecer uma forte atuação legislativa para a aprovação de leis que garantam a representação democrática nos conselhos.

Proposta 2: revisar nos primeiros 90 dias do governo as legislações que impedem ou diminuem a participação da sociedade civil nos conselhos nacionais de políticas públicas. Retomar imediatamente o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e o Conselho Nacional de Povos Indígenas. Retomar a composição original do Conselho Nacional do Meio Ambiente.

3 – A retomada e o fortalecimento das conferências nacionais

A maioria das conferências foi desativada pelo governo Bolsonaro, mas em algumas áreas mais institucionalizadas, como na saúde, elas sobreviveram, devido à força da legislação participativa aprovada ao longo da redemocratização. As conferências nacionais representaram a política participativa mais importante da primeira década deste século. As conferências têm características que expressam as políticas participativas com maior intensidade de participação, uma vez que elas possuem etapas no nível local, estadual e nacional. Elas cumprem papéis muito importantes que devem ser rapidamente recuperados pelo próximo governo. Em primeiro lugar uma mobilização da população no nível local em torno de políticas públicas relevantes e que são capazes de efetivamente mobilizar a população em torno das suas preferências. Por outro lado, a etapa mais importante das conferências nacionais têm sido as etapas estaduais. Essa é a etapa na qual se dá a pactuação ou a reversão das diferentes decisões que foram tomadas no nível local e prepara os delegados para a etapa nacional.

A etapa nacional das conferências é extremamente relevante porque, ao mesmo tempo, em que ela traz atores sociais a Brasília e pactua preferências na área de políticas públicas entre governo e sociedade civil, também ela aponta as preferências do governo para o próprio poder Legislativo, criando condições para a apresentação de novas propostas. As conferências nacionais do governo Lula tiveram a grande virtude de propiciar a participação de mais de seis milhões de pessoas, nas diferentes etapas de conferências nacionais e trazer atores sociais para Brasília com o objetivo de pactuar essas propostas.

Para a rápida retomada das conferências nacionais, é necessária uma padronização maior pela Secretaria Geral da Presidência de seus objetivos. Ou seja, as conferências nacionais devem ter prioridades bastante claras, como ocorreu em algumas conferências e em outras não, e ao mesmo tempo, devem indicar compromissos e apontarem para o governo quais são as prioridades de uma certa agenda legislativa, em cada uma das áreas de políticas sociais. É importante que elas avancem também quanto ao monitoramento de suas diretrizes no interior do próprio governo federal, algo muito importante para o fortalecimento de sua legitimidade e credibilidade.

Proposta 3: A Secretaria Geral deve se organizar para retomar as conferências nacionais a partir do mês de junho com maior padronização de prioridades em seu formato,  em diálogo e articulação com as secretarias e ministérios específicos de cada setor de política pública.

4 – O debate sobre o Orçamento Participativo Nacional

O Orçamento Participativo (OP) foi a política participativa mais importante do Brasil, entre os anos de 2000 e 2012. Foi uma política basicamente municipal que foi se estendendo progressivamente de 13 cidades para 103, depois para mais de 200, chegando a alcançar quase 400 cidades. No entanto, a dinâmica do OP dificultou que ele se estendesse para o nível nacional por dois motivos principais: em primeiro lugar, por falta de institucionalização legal, e em segundo lugar, por uma forte dependência da orientação do poder Executivo local. Ocorreu, portanto, que a política participativa mais relevante quando dos governos petistas no nível federal entre 2003 e 2016 foram as conferências nacionais.

O orçamento secreto, ou seja, as emendas de relator que transferem recursos para a base de deputados sem nenhuma publicidade e que rompem com um padrão da cidadania na distribuição dos recursos públicos, abre a oportunidade para uma tentativa de um orçamento participativo nacional. Ainda assim, temos que nos perguntar de forma mais aprofundada quais são as perspectivas de um OP nacional, ou se na verdade o que se trata é de uma política local de OP baseada em recursos federais. Entendemos que o OP nacional tem chance de se efetivar se de fato ele for um substituto ao orçamento secreto, ou pelo menos uma forma de publicização desse orçamento, tal como foi proposto pela Rede Democracia e Participação. Nesse sentido, a proposta de OP nacional aparenta estar mais próxima da experiência peruana, entre as poucas experiências internacionais de orçamento participativo no nível nacional. O OP nacional do Peru foi implementado, após o governo Fujimori, baseado nas transferências federais para os municípios que tinha como contrapartida a elaboração de um processo participativo.

Alguns elementos podem ainda turbinar esse orçamento participativo no nível local transformando em uma experiência tanto local como estadual. Nesse caso, poderíamos pensar em um processo muito semelhante ao das conferências nacionais, onde depois de um conjunto de reuniões municipais, haveriam reuniões estaduais que decidiram prioridades de algumas grandes obras estaduais. Nesse sentido, pensamos que essa proposta parece ser a mais viável em uma situação na qual o Partido dos Trabalhadores não detém maioria no Congresso Nacional e não detém a capacidade de gerar uma coalizão suficientemente ampla para aprovar essa política. Consideramos também que a proposta de um OP nacional não pode repetir os erros da tentativa de implantação da Política Nacional de Participação Social, que em 2014 expressou fortes conflitos entre o Executivo e o Congresso Nacional, e gerando decreto legislativo que a revogou na Câmara e no Senado. É fundamental que uma política participativa dessa envergadura surja da negociação da peça orçamentária com o Congresso, especialmente com a Câmara dos Deputados.

Proposta 4: vincular as emendas de relator nas áreas de políticas públicas e infraestrutura a participação local da população. Essa participação pode ser tanto uma forma de deliberação sobre prioridade como um controle do emprego dos recursos.

5 – Movimentos sociais na formulação e implementação de políticas públicas

Uma das justas demandas dos movimentos sociais que foram fundamentais na resistência a Bolsonaro e na eleição do presidente Lula é a participação efetiva no próximo governo. Neste sentido, se por um lado entendemos que a institucionalização de conselhos e conferências é um mecanismo importante de participação, por outro lado compreendemos que os movimentos sociais devem participar também na chave do que Luciana Tatagiba e Ana Cláudia Teixeira (2021) chamaram de “programas associativos”.

Trata-se de ações como o convênio com a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) para a construção de centenas de milhares de cisternas no norte de Minas Gerais e nos estados do Nordeste brasileiro. Ou do Programa Crédito Solidário (PCS) ou do Minha Casa Minha Vida Entidades (MCMV-E) que se realizaram por meio dos movimentos e organizações da sociedade civil do campo da moradia popular, a partir da valorização de modelos autogestionários nos empreendimentos habitacionais. Também no campo cultural, com a Política Nacional Cultura Viva (PNCV), com os Pontos e Pontões de Cultura, no desenvolvimento de redes baseadas no empoderamento das comunidades. Ou ainda no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), onde os movimentos sociais rurais puderam se articular em cooperativas para produzirem e venderem nos seus municípios, interferindo nas redes locais de distribuição de alimentos e fazendo frente às contradições do mercado da fome no Brasil.

Tais experiências devem ser fortalecidas e se multiplicar, com uma estratégia centralizada e deliberada de articulação entre o Governo Federal e as redes de movimentos sociais. A ideia central é fomentar modelos alternativos de produção e acesso a bens públicos formulados e implementados em conjunto com “atores coletivos com histórico de mobilização direta em prol da afirmação de direitos”. Esse tipo de política pública participativa deve ser realizada no máximo possível de programas do governo, como estratégia de relação com uma sociedade que não espera pelo governo, ao contrário, atua como elemento mobilizador e articulador de uma participação prática, com resultados imediatos e visíveis pela transformação da sociedade. Há um enorme potencial dessas ações no combate à fome, por exemplo.

Entendemos que também o centro dinamizador destes “programas associativos” deve se localizar na Secretaria Geral, na interface entre governo e movimentos sociais / sociedade civil, com seu fortalecimento enquanto princípio de governo. Evidente que tudo deverá ter seu enraizamento, formulação e implementação de ações nas secretarias e ministérios responsáveis pelos setores.

Proposta 5: Estabelecer na Secretaria Geral, além da interlocução e articulação com movimentos sociais e sociedade civil, uma dinâmica de estímulo à formulação de políticas públicas nas quais estes sejam protagonistas.

6 – Um governo aberto às inovações democráticas

Há uma forte efervescência criativa na sociedade brasileira e em experiências de governos subnacionais (no Brasil e em outros países) no campo das inovações democráticas que podem e devem ser utilizadas por setores e áreas do Governo Federal. Plataforma digitais como a Participedia são repositórios de experiências de interação entre sociedade civil e governos que podem ser avaliadas e incorporadas em diversas ações da administração pública federal.

O paradigma do governo aberto (composto pelos elementos de transparência, integridade, controle, participação e tecnologia) tem sido importante para abrigar ações de co-criação e gestão compartilhada de políticas públicas. O Brasil é signatário de acordos internacionais neste campo, que se desenvolveu consideravelmente no governo Dilma Rousseff e em governos subnacionais como o de Fernando Haddad na prefeitura de São Paulo.

A Secretaria Geral, em sua próxima Secretaria Nacional de Participação Social, deverá abrigar uma espécie de “núcleo estratégico-participativo” capaz de absorver demandas neste sentido advindas dos ministérios e secretarias e provocar nestes organismos que suas políticas, programas e ações sejam realizados com um componente participativo e mobilizador da sociedade. É desejável que cada ministério ou secretaria finalística tenha em si um núcleo semelhante, que possa se responsabilizar pelas ações ligadas às inovações democráticas.

Proposta 6: Estabelecer um “núcleo estratégico-participativo” na Secretaria Geral, articulado a núcleos semelhantes nos ministérios e secretarias.

Considerações finais

Por fim, vale a pena uma rápida nota sobre os elementos políticos e valorativos da participação.  As políticas participativas tem uma importância que transcende a organização e a efetividade das políticas públicas. Elas estão relacionadas a um ato de democratização das relações entre estado e sociedade que ajudam na valorização da democracia. No caso brasileiro, onde passamos quatro anos concentrados em mensagens presidenciais nas redes sociais ou lives que concentravam a política em atos de ratificação ou oposição é muito importante envolver atores socais em discussões efetivas sobre políticas públicas. Esse ato valoriza a democracia não apenas como forma de governo, mas principalmente como forma de relação entre Estado e sociedade.

Bibliografia

Bezerra, Carla; Rodrigues, Maira; Romão, Wagner (2022). Conselhos de Políticas Públicas no governo Bolsonaro: impactos do Decreto 9.759/2019 sobre a participação da sociedade civil. In: Luciana Tatagiba, Debora Rezende de Almeida, Adrian Gurza Lavalle e Marcelo Kunrath Silva (orgs.). Participação e ativismos: entre retrocessos e resistências. Porto Alegre, Editora Zouk, p. 37-64.

Tatagiba, L.; Teixeira, A. C. (2021). Movimentos sociais e políticas públicas no ciclo dos governos petistas: a controversa novidade dos programas associativos. In: Luciana Tatagiba e Ana Claudia C. Teixeira (orgs.). Movimentos sociais e políticas públicas. São Paulo: Unesp, p. 23-47.

[1] Leonardo Avritzer é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG e coordenador do Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação. Foi presidente da Associação Brasileira de Ciência Política – ABCP (2012-16).

[2] Wagner Romão é professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp e co-coordenador do Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (Nepac). Foi presidente da Associação de Docentes da Unicamp – ADunicamp (2018-20) e candidato a deputado estadual pelo PT em São Paulo em 2022.

Leave comment