Um Brasil doente (1)
São oito episódios da série “extremistas.br”, cada um com cerca de 45 minutos*, dirigida pelo jornalista Caio Cavechini, autor do filme “Marielle – o documentário”, “Carta para um Ladrão de Livros”, e “Escola Base – Um Repórter Enfrenta o Passado”. Todos muito bons. Aqui, trata-se de material com notável função pedagógica, grosso e precioso material
São oito episódios da série “extremistas.br”, cada um com cerca de 45 minutos*, dirigida pelo jornalista Caio Cavechini, autor do filme “Marielle – o documentário”, “Carta para um Ladrão de Livros”, e “Escola Base – Um Repórter Enfrenta o Passado”. Todos muito bons.
Aqui, trata-se de material com notável função pedagógica, grosso e precioso material de imagens destinado a nutrir a memória do chamado “grande público”, e com particular utilidade neste momento de aguda e violenta cisão política no país.
Especialistas, pesquisadores, personagens conhecidos da política nacional, influenciadores e marqueteiros digitais e alguns militantes e eleitores arrependidos participam da série. Há também entrevistas com indivíduos mantidos ocultos nessas guerras virtuais; os que contratam e remuneram técnicos de TI para difundir notícias falsas sobre adversários políticos.
Com títulos sugestivos tais como Indignados, Supremo Alvo, Armados em Nome de Deus, Desinformação e Dinheiro, Guerra Política, Guerra Moral, a série documental acompanha também o trabalho de alguns pesquisadores que monitoram o discurso de ódio nas redes sociais e o sofrimento de vítimas da violência política. São personagens relacionados ao armamentismo, ao uso oportunista e exploração da religião, ao negacionismo e à manipulação da moral e dos costumes.
Com roteiro de Carol Pires e Carlos Juliano Barros, parceiros de Cavechini, a série foi produzida durante os dois últimos anos, contém mais de mil horas de gravação e se estende até os acontecimentos golpistas de 8 de janeiro passado mostrando como os ambientes dos acampamentos defronte aos quartéis do exército geraram o acirramento de um universo de circulação de informação paralelo e foram ”incubadores das ações terroristas”, no preciso dizer do Ministro Flávio Dino.
Ali, os golpistas consumiam canais de informação alinhados a eles. ”Não havia o contraditório, a reflexão, a divergência racional”, diz o diretor Cavechini.
E desse ponto de vista o lamentável espetáculo se torna uma aberrante coleção de episódios de vídeos de TV e sua importância é a de apresentar, – didaticamente, repetimos -, o conjunto da obra anti-política iniciada há anos, mas que ia, no correr do tempo, se diluindo na naturalização cotidiana de um informativo diário que já nem chocava tanto.
Agora, visto no seu conjunto, mostra o que foi a preparação meticulosa para desfechar o golpe de estado – abortado, como se viu. A construção das condições para desfechar o caos, a quebradeira e a instabilidade como pregava o ex-governo enquanto decretava, por exemplo, cada uma das 40 medidas liberando geral a posse de armas, negando a ação política e usando pastores evangélicos como ponta de lança na catequese de uma população no limite das suas energias e do seu ressentimento.
”O povo armado jamais será escravizado” era o mote enganador de reuniões evangélicas que pretendiam seguir as sessões especiais de benção a armamentos (!) como as realizadas nos Estados Unidos e nas quais era dito: ”a arma é apenas um instrumento”.
Num dos primeiros episódios da série, um marqueteiro digital não poupa palavras na sua entrevista: ”A nossa função é causar mal-estar. Açular a indignação, aperfeiçoar a narrativa da indignação e os discursos de ódio”. Reativar o ódio permanente com os disparos de recados digitais de massa (proibidos pela justiça).
E uma mulher observa: ” O ativismo vai se entranhando na gente e nos chamando para uma frente de guerra até que eu decida ir para esse front”, se referindo à sua obcecada participação na tentativa frustrada de putsch.
CACS, pastores, ‘arminha na mão’, o ‘mito’ de meia tigela, a luta do bem contra o mal, surtos de paranoia – como o do soldado baiano Wesley Soares, em Salvador, paranoide (?) que acabou morto -, o assassinato de Marcelo Arruda durante a festa do seu aniversário, em Foz do Iguaçu, a perseguição tresloucada da deputada histérica, de arma em punho e preparada para alvejar um cidadão eleitor do PT, perseguindo-o pelas ruas cheias de gente, no centro de São Paulo (!), está tudo lá. Um Brasil doente.
E muito mais. Vale seguir os episódios que ainda irão ao ar durante o próximo mês de fevereiro. Nesses que assistimos e sobre os quais escrevemos, duas informações lembram:
– nas últimas eleições, o número de policiais candidatos a parlamentares aumentou em 27 por cento em relação a 2018;
– um dos slogans prediletos do candidato neofascista a presidente da República, derrotado no ano passado era este: ”a esquerda só pode ser vencida com arma de fogo”.
Ficam por aqui, por enquanto, as observações sobre “extremistas br” estimando que a nossa memória desleixada e absorvida num eterno tempo presente nunca mais se apague diluída na avalanche dos noticiários políticos de um cotidiano sombrio, mas naturalizado.
*Apenas na Globoplay.
Jornalista.